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Um conto para Maria

Atualizado: 19 de abr.

Como ajudar uma criança a passar pelo luto?


Não há uma resposta definitiva, pois depende da idade da criança, do relacionamento, das crenças da família e outras variáveis.


Certamente que cada caso é um caso, mas há um consenso onde não se deve mentir para a criança, e é muito importante que a família busque auxílio quando percebe que não consegue lidar com a situação da criança enlutada.


Em certa ocasião, uma cliente passou por momento delicado, quando do falecimento de sua sogra, pois sua filha, com apenas oito anos, não se conformava com o desaparecimento da avó.


As explicações possíveis e tradicionais, sobre a avó ter ido para o céu, serviam para deixar a criança ainda mais enlutada.


Em nossas conversas, percebi que o "céu" era muito distante e subjetivo para aquela menina, e ela relutava e sofria com essa informação tão abstrata.


Foi aí que me veio inspiração para criar uma história, para auxiliar a mãe na comunicação com a criança.


É importante que se diga que o conto, contado pela mãe para sua filha, auxiliou para que a criança pudesse dizer o que sentia e fazer as perguntas que a perturbava.


A abertura da comunicação entre mãe e filha foi determinante para que os pais percebessem que sua criança precisava de ajuda profissional para superar o trauma.


Hoje lembrei-me desse conto, resgatei-o dos guardados e senti de compartilhar aqui.


Como recomendação adicional, lembro que crianças devem ser atendidas por profissionais habilitados, sobretudo no que refere-se à saúde mental.


19/04/2024



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Conto para Maria ( nome fictício)


Era segunda-feira e Julinha chegou da escola com uma pergunta nova e surpreendente.


-Vovó, pra onde vão as pessoas que a gente não vê mais?


Desconfiada, Dona Ilda perguntou o motivo daquela pergunta, e Julinha contou que sua amiguinha da escola faltou aula por uma semana, e que agora sua mãe não ia mais levá-la todas as manhãs, porque havia ido para o céu.


-Mas vó, isso é muito esquisito, porque gente não voa. Só de avião ou de balão, mas isso é outra história - tornou Julinha, aos quatro anos de idade.


-Ah Julinha, disse a vovó, a gente não vê mais, porque elas viram pedacinhos pequenininhos de luz e ficam em todas as coisas.


Julinha ficou cismada, mas não podia duvidar da sua avó. Se ela disse que as pessoas viravam pedacinhos de luz e estavam em todas as coisas, é porque estavam.


Afinal, as avós sempre sabem sobre aquelas coisas que ninguém mais sabe.


Para Julinha, uma coisa virar outra parecia muito mais lógico do que alguém ir voando para o céu.


A vida toda ela já tinha visto uma coisa se transformar em outra coisa.


Era assim com sementes que viravam plantas.

E também quando sua avó pegava muitos produtos e transformava num bolo gostoso.

E quando via filhotes virarem animais grandes.

E quando sabia que a mesa de casa tinha sido um árvore, e até mesmo quando via o gelo derreter e virar água.


Era fácil perceber que uma coisa sumia para outra aparecer.

Mas quando se tratava de gente sumindo...

Hummmmm... não sei não.


Ela não sabia como podia ser isso e guardou essa informação na sua mente curiosa e foi brincar.


Os anos passaram e Julinha já contava 8 oito anos, quando viveu a dor profunda de não poder mais encontrar sua avó. Todo mundo chorou. Dona Ilda era muito querida.


Como assim, minha avó não vai mais voltar?


Julinha chorou e chorou, pois nesta época já sabia o que era a morte de um ser.


Ela tinha visto quando o canário Tenor morreu, e seu pai ficou numa tristeza que dava dó.


Sabia que uma pessoa, igual a um animalzinho que morre, não pode mais voltar, porque seu coração, seu corpo, parou de funcionar e não tem como consertar.


E a Julinha sabia que a gente sofre muito mesmo e não sabe o que fazer. E que às vezes, até os adultos não sabem, mas é normal a gente se sentir assim. Isso se chama luto.


Além de estar muito triste por não ver mais a vovó, Julinha estava chateada porque, assim como sua amiguinha da escola maternal, lhe disseram que a vovó havia ido para o céu.


Ela não se conformava com essa história de sua avó ter ido para o céu, um lugar que lhe parecia tão distante, tão impossível de entender.


E a Julinha sentia uma porção de coisas que ainda não conhecia. Sentiu tristeza, incompreensão, saudade, raiva e muita vontade de entender onde estaria sua querida avó.


Acontece que ela ainda lembrava-se da explicação: "viram pedacinhos de luz e estão em todas as coisas".


Será mesmo que vovó estaria em todas as coisas?


E Julinha passou a olhar para tudo no mundo procurando os pedacinhos de luz da sua avó.

Procurou no jeito de falar do "seu" Ari, do armazém.

No riso da prima Thea.

Nas histórias que ouvia sobre as outras pessoas.

Nas brincadeiras da escola com seus amiguinhos.


Foi percebendo que todo mundo, gente grande e pequena, tinha histórias sobre alguém que não estava mais ali, vivendo.


Quer dizer que o corpo não está, mas as histórias ficam vivas?

Será que era isso que a vovó dizia que era virar luz e estar em todas as coisas?


São tantas coisas inexplicáveis, e Julinha tinha muita curiosidade.


Ela lembrou-se das gargalhadas que dava quando sua avó a levava pra brincar no balanço, do cheirinho de bolo saindo do forno, da bronca quando não fazia o dever da escola... em tantas coisas a Julinha podia encontrar a vovó, mas ela ainda não sabia disso, e por mais que procurasse, não conseguia encontrar lá fora.


Numa noite, Julinha sonhou que estava juntinho de Dona Ilda, em seu colo, ouvindo seu coração.


E sua avó lhe dizia que as pessoas que amamos ficam para sempre em nosso coração, ficam nas histórias que viveram juntas, numa coisa que a gente adulta chama de afeto.


Sabe Julinha, afeto é uma palavra fofa e cheia de curvinhas, pra falar de uma coisa que a gente gosta muito, que são os gestos de carinho, cuidado e atenção.


E tem pessoas que são tão, mas tão importantes pra gente, que deixam muitos momentos maravilhosos e sentimos saudades desse afeto. É por isso que é tão difícil ficar longe delas.


Julinha acordou sobressaltada, com a mãozinha em seu coração e pode então sentir, dentro de si, a sua avó.


E ela entendeu que vovó estava também em outros corações que a amavam, nos lugares por onde passou, nas canções que cantou, nas receitas gostosas que preparou, nos risos, nas conversas, e em tantas outras coisas, em tantos afetos.


Viu só Julinha? A vovó realmente sabia de coisas diferentes, que agora você também pode começar a entender.


por Celia Barboza

algum dia em 2003.

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Aqui termina a história que escrevi em 2003,

e a menina que me inspirou, agora é uma bela mulher aos 29 anos.


E, para você, pessoa adulta que leu sobre os motivos dessa história ter nascido, e que não tem a idade da "Julinha", e nem lembra mais como é o mistério da vida aos olhos da criança, abra o coração para perceber que vida é mistério e magia.


No fim das contas, ficaremos somente com a luz manifestada em encontros que duram por algum tempo e o afeto que se nutre nos encontros.


Como afeto é luz, não podemos segurá-la, mas podemos reconhecê-la e honrá-la, seguindo no direito de viver plenamente.


Adiante, também seremos apenas memória. Que sejam as melhores.


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CELIA BARBOZA

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