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Ritos e pertencimento: o paradoxo do desapego


A cada manhã iniciamos um ritual quase imperceptível, uma coreografia sincronizada de hábitos que moldam o curso do dia. Desde o despertar até a escolha das roupas, cada ação é um passo dentro do compasso invisível das rotinas. Estas ritualidades, muitas vezes automáticas, tecem a tapeçaria que reflete valores, metas e identidade, moldando a estrutura oculta que dá sentido à aparente simplicidade do cotidiano.


Encontramos o cotidiano também retratado nas pinturas rupestres; onde nas cenas, o ser humano retrata a si mesmo em interação com tudo que o permeia, no mundo real e imaginado, ficando evidente que o desejo de representar-se e dar significado é imanente à humanidade.


Por imanente, entende-se aquilo que está inseparavelmente contido na natureza de um ser; e a natureza humana envolve escrever a própria história e deixá-la como legado, assim como envolve necessidades básicas específicas e subjetividades, como o senso de ritualidade e sacralidade.


Desenhamos nas paredes das cavernas, dançamos para o fogo e a lua, pedimos aos deuses que nos dessem a boa colheita e aprendemos que havia alguma relação entre o mundo interno e o externo.


Por ser profundamente orgânica, a ritualidade atua organizando as subjetividades, pela natureza dos seus conteúdos e ritmos.


Ritos e rituais


O Rito é como uma lei, o objetivo por trás de tudo, e reflete princípios que o orientam, possuindo elementos históricos, dentro de um grupo e cultura.


Assim, a celebração do rito, a concretização dos costumes, das regras estabelecidas e dos ensinamentos, é chamada de ritual. Enquanto o rito é o conceito geral, os rituais são as práticas.

Talvez, onde você trabalha exista o “sextou!”, celebrando a semana de trabalho que termina e antecipando o encontro da próxima semana. Uma verificação festiva de vida e pertencimento que, sendo preservada, em pouco tempo passa a fazer parte da cultura da empresa e torna-se orgânica.


Rituais têm como marca a repetição, e oferecem uma sensação de segurança, não apenas por sua familiaridade, mas porque promovem um sentimento de coesão social e ajudam a criar um senso de continuidade, conexão e significado.


Nos conectamos com rituais por razões que emanam, ao mesmo tempo em que atendem, às necessidades primárias humanas de Previsibilidade, Pertencimento, Proteção, Celebração, Tradições, Alívio de Estresse, Percepção de Tempo e Território, Conexão Espiritual e outras camadas.


Neste texto, nos concentraremos sobre as quatro primeiras, por se referirem às necessidades básicas de autorregulação, independente da cultura, pois são necessidades do corpo para, consequentemente, alcançar equilíbrio emocional, e coincidem com características que são marcas comuns aos rituais, como a repetição e o senso de coesão.


Os quatro pilares das necessidades básicas humanas são Previsibilidade, Pertencimento, Proteção, Celebração, funcionam de maneira entrelaçada e interdependentes e compõem os pilares para a autorregulação e sobrevivência.


Primariamente, enquanto bebês, precisamos que o alimento esteja disponível na hora certa, que a higienização aconteça síncrona com a necessidade de higiene. A criança quer ser atendida no seu tempo, e essa previsibilidade a acalma. Receber resposta imediata às necessidades, e a repetição dessas respostas, traz segurança.

Para que a necessidade de previsibilidade seja atendida, é necessário pertencer, ter iguais por perto.


Pertencimento ocorre como um reconhecimento, de pessoas e territórios, com o qual nos identificamos e que nos identifica como pertencentes, e assim sentimos confiança.

O cheiro da mãe, a voz da pessoa cuidadora, a qualidade da atenção, colaboram com o senso de coesão e direção, como saber para onde ir e à quem recorrer.

Assim, buscamos o aconchego no colo da pessoa cuidadora e essa proximidade é regulatória para o corpo.


Se experimentamos previsibilidade por nos sentir atendidos e pertencentes, igualmente encontramos o senso de proteção.


Proteção refere-se à experimentar proximidade, familiaridade, disponibilidade, abraço, toque afetivo, colo, no sentido orgânico e no sentido sutil, estimulando ainda mais o sentimento de segurança.

Não é à toa, que ter e confiar em amigos que nos acolham nos acalma tanto, pois são os pilares básicos sendo atendidos de forma natural, onde se pode encontrar conexão e significado.

Seguros, podemos então celebrar.


Celebração também é necessidade básica e manifesta-se na infância, no ato de brincar. Bebês brincam e no brincar é que aprendem sobre si mesmos, até onde podem ir, o que podem suportar, dividir, pedir e receber. Aprendem a lidar com as próprias emoções e com as emoções dos outros. Os limites entre "eu e o outro" são estabelecidos no brincar.


Todas as cerimônias que conhecemos se orientam por previsibilidade, pertencimento, proteção e celebração, seja num rito formal, como uma colação de grau, ou aguardando o momento do pôr do sol para aplaudi-lo.


As características dos rituais, subjetivamente, atendem às necessidades dos pilares básicos; rituais nos acalmam, conectando e preenchendo de significado, auxiliando à lidar melhor com as instabilidades da vida.


É possível que você conheça a citação de Heráclito de Éfeso “nada é permanente, exceto a mudança”, mas talvez nunca tenha se dado conta da impermanência, embora esteja na experiência diária, que não há um dia sequer que seja igual ao outro.


Na infância, no brincar, aprendemos sobre a impermanência, afinal a hora de brincar termina e isso provoca certa angústia e insatisfação, paradoxalmente, para brincar com qualidade de presença, é necessário esquecer-se do tempo e, simplesmente, estar presente.

A maioria de nós conhece a experiência do tempo que passa mais rápido ou mais lento, de acordo com o estado emocional, e gostaríamos de dar pausa naqueles momentos que nos marcaram por algum nível de bem estar.


Sendo mudança uma lei da natureza, por conseguinte a vida é efêmera. Tudo nasce, se desenvolve e morre, entregue aos ciclos naturais da impermanência.


Isso abala os quatro pilares básicos e, constantemente, precisamos verificar o quanto as coisas são previsíveis e se há proteção suficiente.

É um ciclo sem fim.

Rituais nos causam, mesmo que temporariamente, nova percepção do tempo, atenuando as sobrecargas.


Conhecemos a instabilidade, a impermanência, no próprio corpo, e nos custa saber que tudo que apreciamos, pode mudar ou desaparecer no momento seguinte, e o tempo não aguarda a nossa vontade.


Este conhecimento, em tese, deveria nos levar à uma postura de maior contemplação no agora, no presente; no entanto, nossa mente sofre uma espécie de curvatura em direção ao futuro, elaborando condições ideais, (quando... se... somente se...), ao mesmo tempo em que outra curvatura vai para o passado, buscando as possíveis justificativas das coisas, (por causa de...).


Diante da quase impossibilidade de viver no agora, encontramos uma maneira de nos relacionar com o tempo, sendo a mais comum de todas, a invenção do calendário.


Ao empacotar o tempo encontramos alguma sensação de controle, pois ciclos tem começo e fim; de certa forma esse recurso atende à necessidade de previsibilidade, assim como de proteção.


É fácil perceber que determinadas datas, seja do aniversário, na passagem de ano, ou dos ciclos astrológicos, nos move para observar o efeito do tempo sobre nós.


O exercício de vasculhar o tempo é essencialmente humano e as retrospectivas nos ajudam à “contê-lo” e “selecioná-lo” e, assim, somos tomados por subjetividades como a revisão das experiências e projeção de novas expectativas.


O paradoxo do desapego.


É verdade que nem tudo nos serve, muitas coisas demandam ser dispensadas, outras precisam de reciclagem e o movimento de desapegar, antes de ritualístico, é uma necessidade orgânica, portanto natural.


Um exemplo orgânico pode ser associado aos intestinos, que são muito responsivos durante a infância, quando estamos aprendendo como deveríamos nos comportar para sermos aceitos, quais são nossos lugares seguros, que ritos devemos seguir.

E também é aquele órgão que esperamos que, diariamente, tire as toxinas de dentro do corpo, momento que pode ser muito celebrado e ritualístico, como é para uma criança.


No entanto, no que se refere aos aspectos subjetivos, sentimentos, ressentimentos, mágoas, frustrações e tudo que pertence ao que não pode ser medido e nem pesado, não dispomos de um órgão responsável por fazer essa faxina. Como esvaziar disso? Como identificar o que deve ou não ir embora? Temos essa capacidade?


Uma ideia discutida filosoficamente é sobre o paradoxo do desapego. Ele gira em torno da ideia de que, ao se abrir mão dos desejos, uma pessoa pode, paradoxalmente, encontrar uma maior sensação de paz, satisfação e felicidade.

Isso significa que, ao deixar de lado a busca constante por determinar como as coisas devem ser ou não e o apego pelos formatos ideais, pode-se experimentar uma liberdade interior e um estado de verdadeira compaixão.


O desafio do não-desejo é imenso, pois como somos movidos para o atendimento das necessidades básicas, é como se precisássemos abdicar, ainda que momentaneamente, da previsibilidade, pertencimento, proteção e celebração, que nos são imanentes.


Não obstante, o incômodo que leva ao desejo do desapego, paradoxalmente, tem origem nos resquícios das necessidades que não foram atendidas, e ainda sofremos em busca de atendê-las.


Desta forma, tenta-se desapegar de algo que é faltante, formando-se assim mais um paradoxo.


De certa maneira, o alívio buscado no sentimento de desapegar, responde à um chamado natural para a vida, quando precisamos seguir, encontrando novas formas e caminhos, com toda nossa história, completudes e incompletudes.


Vale ressaltar que sonhar também é imanente ao ser humano, e a perspectiva de desapegar não se relaciona com abdicar dos sonhos.


Somos os grandes artistas, os criativos do planeta, sonhamos e damos significado à todas as experiências.


"Considerando que viver é artimanha que se cultiva entre aquilo que se enxerga e aquilo que mora no invisível, seguimos o rastro da flecha que atravessa o tempo". (SIMAS;RUFINO,2020, p.10)


Alguns autores sustentam que é suficiente ser grato pelo que existe no agora, desfrutando inteiramente, como uma criança que brinca, despreocupada do que vem depois, já que o “há de vir”, virá, inexoravelmente.


Em nada diferente dos nossos ancestrais, sonhamos, registramos, nos reunimos, nos abraçamos, entregamos à luz, à Terra, aos ancestrais e, humildemente, pedimos que nos cuidem, confiando que assim seja.


O melhor ritual será aquele que atenda às suas demandas, seja em grupo ou em silêncio profundo, ou simplesmente levantando sua taça para saudar o novo ciclo.


A ritualidade, imanente à natureza humana, dá forma, significados e conexões que transcendem culturas e épocas.


À medida que exploramos as diferentes facetas dessa expressão ancestral, torna-se evidente que os rituais desempenham um papel vital na construção da identidade, na promoção do bem-estar emocional e na consolidação dos laços sociais.


Ao reconhecer e celebrar a diversidade de práticas rituais, podemos ampliar nossa compreensão da complexa tessitura que constitui a experiência humana, honrando as tradições do passado enquanto moldamos os rituais do futuro.


Por Celia Barboza


Bibliografia

Quando o Corpo Diz Não. Aprenda a reconhecer o impacto da ligação corpo-mente na prevenção e cura da doença. Gabor Matè


O Poder do Agora. Eckhart Tolle


Ideias para adiar o fim do mundo. Ailton Krenak


Encantamento: sobre política de vida. Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino


O verdadeiro criador de tudo. Miguel Nicolelis


Panorama Social Dinâmica interior dos relacionamentos humanos. Lucas Derks


Que Haja Paz – Preces do Mundo Todo. Jeremy Brooks e Jude Daly


O jardineiro que tinha fé: Uma fábula sobre o que não pode morrer nunca. Clarissa Pinkola

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CELIA BARBOZA

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