Ih! Já é Ano Novo! Ainda ontem era o ano que foi ficando velho.
A vida é sobre impermanência e sobre o modo como lidamos com a verdade tão explícita, mas tão explícita, de que nada é eterno, que preferimos nem pensar sobre isso.
A ideia da morte nos apavora, a perspectiva de perder alguma coisa nos desestabiliza; caminhamos sobre as areias do tempo, mas temos a ilusão de ser sobre a rocha bruta.
Este ano eu fiz uma lindíssima tatuagem de hena. É a arte Mehandi.
Nossa! Acho que foi a mais bonita. E desta vez eu escolhi fazer nas costas, para que eu não tivesse nenhum controle da experiência.
Foi incrível! Nos três primeiros dias, a hena intensifica e destaca os detalhes. Depois, começa à ir embora com o tempo.
Foi uma experiência profunda de contato. Puxa, como eu queria para sempre; ah, acho que vou fazer uma tatuagem de verdade; que pena... está sumindo; acabando; acabou.
Outro aspecto maravilhoso foi perceber os outros vivendo a experiência. "Nossa, que lindo", " mas some?", " que pena", "deveria ser pra sempre", "mas você paga para fazer algo que não dura?"
Talvez esta tenha sido a pergunta que mais me fez refletir, sobre a ilusão de poder comprar algo para sempre. Chamam-se "bens materiais", pelos quais esquecemos os bens imateriais.
Frequentemente é assim, o que gostamos queremos segurar, agarrar, guardar só pra gente e , de preferência, parar o tempo, aqui perto.
Fazemos um processo inverso com o que tememos. Desconhecemos a existência, mas também tentamos segurar o tempo, lá longe.
Tanto minha bela tatuagem como o ano passaram. E no que passam, dão espaço para outras coisas.
No momento, minhas costas já são uma tela em branco para uma nova pintura, se eu quiser.
É muito boa a sensação de renovar, de entrar um novo ar.
Faremos nossas preces e declararemos nossos desejos. É justo! É necessário. Mas quando a vida trouxer experiências classificadas de ruins, observa que é porque a ideia de perder está presente e podemos estar presos nisso.
O grande Eckart Tolè diz que o princípio da dor começa no conceito do "meu". Nós nos apossamos das coisas e das pessoas. Meu trabalho, meus amigos, meus filhos, meu dinheiro, minha casa e tantos meus. E todos esses meus precisam se comportar de uma maneira específica, para que não haja decepção. Sim, talvez eles sejam meus ou seus; mas embora possam ser até por longo tempo, ainda assim são impermanentes, já que tudo pode se acabar agora mesmo.
Buscamos conhecimento, meditamos, queremos equilíbrio, nos esforçamos para aprender o desapego, ensinamos sem ter aprendido.
Tudo normal, faz parte da nossa jornada humaníssima e não há nenhum problema nisso, pois todos estamos nos esforçando para sermos melhores.
Talvez a questão seja sobre o esforço. Fomos ensinados a nos esforçar e pouco a apreciar. Nos ensinaram sobre a escassez, tanto e tão profundamente, que vivemos tentando evitá-la e, de algum modo, não suportamos perder nada.
Lembra quando você era criança? Passou, sua infância passou, ainda que haja saudades. Lembra a melhor notícia que você recebeu na vida? Ela também passou. E a pior notícia? Também se foi.
Tudo nos deixa alguma marca impressa na alma, sem saber muitas vezes nos agarramos nessas marcas, permanecendo tão profunda e inconscientemente vinculados, que esquecemos de, verdadeiramente, estar presentes.
Pode ser que este cárcere se mostre como uma certa culpa pelo sucesso ou por ser feliz de um modo não convencional.
Sabe que a gente pode ficar preso na experiência difícil de um ancestral? E por causa disso, termos muita dificuldade de celebrar? Celebrar mesmo!
E do mesmo modo podemos ficar presos nas nossas fantasias e projeções?
Então temos um ano novo, de uma nova década, que traz alegria e esperanças e que nos lança para o momento seguinte de impermanência e de compartilhar, compassivamente.
É por isso mesmo que precisamos dar o nosso melhor e fazer as melhores coisas na nossa impermanente vida. O legado é a possibilidade de deixarmos bons rastros para os que virão à seguir e , quem sabe, seja esta a imortalidade.
Me falta poesia, que empresto do talentoso Cassiano Ricardo.
1947, Um Dia Depois do Outro (coletânea)
Cassiano Ricardo O relógio
Diante de coisa tão doída Conservemo-nos serenos
Cada minuto da vida Nunca é mais, é sempre menos
Ser é apenas uma face Do não ser, e não do ser
Desde o instante em que se nasce Já se começa a morrer.
Comments