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A Jaca

Atualizado: 30 de set. de 2020

-Aconteceu de verdade.

Era a ante véspera do ano novo 2019/2020, domingo, dia lindo de Rio de Janeiro. Eu estava nas minhas auto declaradas férias, aonde tinha firmado o compromisso de acordar todos os dias e caminhar, colocando movimento no corpo e deixando o sangue circular fora de práticas pensantes. A verdade é que eu já estava entrando na segunda semana do compromisso e não tinha cumprido nem um dia.

É nessa hora que a gente agradece não registrar essas coisas em cartório; daria problema e geraria multa por auto inadimplência, com certeza. Não sou de fazer listas de objetivos muito longos, como metas e projetos mirabolantes. Eu tenho uma ideia das coisas que desejo fazer e vou caminhando suavemente, seguindo o fluxo, na direção dessas coisas.  Mas, quando se trata de coisas simples, como levantar e caminhar... puxa vida, é quase intransponível e inúmeras vezes, a sabotagem em forma de "amanhã eu faço", me vence. Minha homeopata identificou que sou uma personalidade Lycopodium. Uma espécie de postergadora, que toma conta com zelo, da própria postergação. Funciona assim: o pé do sofá está quebrado?  sim , o pé do sofá está quebrado; então, tenho que trocar o pé do sofá; enquanto não troco, eu sento do outro lado; eu devia chamar alguém pra trocar o pé do sofá; mas, eu sei fazer isso, pra que chamar alguém; semana que vem troco; ah! pintou um curso; semana que vem eu troco... Sabe este projeto complexo de ter algo para fazer e não fazer, mas sabendo de antemão que numa hora qualquer será feito? Uma amiga diz que é um rodear em torno de si mesma. Perfeito! Aí, tem um dia que a pessoa levanta, troca o pé do sofá, pinta a parede, cuida de todo o jardim, ajeita o telhadinho que estava caindo, enquanto deixa pronto um almoço gostoso, porque a vida é pra celebrar. Uhu!  E ainda sobrou energia. Se você está aí se identificando, calma!  Num mesmo ser existem muitos arquétipos, tudo convive simultaneamente. Gosto de chamar isso de luz e sombra. Fica fazendo lusco-fusco, mostrando facetas e nuances. E neste tal domingo eu resolvi que iria cumprir minha agenda. Uau!

- Levanta e Anda. Como era domingo, coincidia com uma feira orgânica que adoro. Fica lá para as bandas das Vargens, em Jacarepaguá. Gosto muito de ir até lá; é como uma reunião de amigos na pracinha. Aliás, é numa pracinha bem simples que a feira da roça acontece.  São produtores familiares e os produtos orgânicos são oferecidos em quantidades modestas, conforme a natureza ofereceu. A variedade é bem grande, entre frutas, legumes, hortaliças, raízes diversas, ovos de quintal, temperos e plantas alimentícias não convencionais; dá uma alegria na gente estar lá. Além disso sempre tem uma chance de você tomar um suco verde feito ali na hora. Então costurei meus planos. Vou à feira e depois me mando para a praia.  Acontece que eu e o Rio de Janeiro inteiro, tivemos a mesma ideia ao mesmo tempo, mas só descobri depois. Como eu estava ao léu, optei por fazer o caminho bucólico pela Estrada dos Bandeirantes, desfrutando da visão do entorno do Parque Nacional da Pedra Branca, entrando aqui e ali; sem pressa de chegar, são muitas coisas interessantes por aqueles lados. Cheguei na feira, comprei as coisinhas que queria e tomei o rumo da praia, seguindo o mesmo princípio bucólico, já que eu estava entregue a mim mesma, e subi a estrada pela lateral do Rio Morto até o Pontal.

Foi ali que percebi que o Universo e além, estavam no Recreio dos Bandeirantes. 


Tentei alcançar o litoral pela Gilka Machado e nada se movia. Tentei pela Glaucio Gil e estava pior...  Comecei a observar o voraz movimento dos reboques da Seop, na sua maldosa operação pescaria, num vai e vem insano, cada qual com carros e motos que teriam o depósito municipal, ali pertinho mesmo como destino, estragando o domingo de praia de muita gente. - Repriorizando

Dei meia volta; voltei tranquila pela Estrada dos Bandeirantes, que àquela hora, trafegando no sentido inverso da praia, mais parecia uma cidade do interior. Eu estava à 40 Km, sem ninguém para me amolar e impedir meu estado de contemplação. É tão interessante experimentar o que está disponível. Diminuindo a velocidade, a gente vê o que não viu. E quantas vezes por dia, estamos tão acelerados que somos incapazes de ver, de ouvir, de experimentar o que a vida serviu. É uma indisponibilidade para si mesmos que pode ser transitória, mas com maior frequência é permanente Eu poderia estar chateada por não ter conseguido realizar meu plano infalível do domingo - mais uma vez- de caminhar na praia, por exemplo, sonho dourado de milhares de pessoas. Mas faz tempo eu uso muito o estado de agora, o estado de calma. O agora é só isso; o agora. O agora é um estado de presença, de ter tudo que se precisa. É uma contemplação atenta e relaxada. Foi nesta onda que vi uma barraca com uma pilha de jacas. Mas eu nem gosto de jaca. Nenhuma! Nem dura, nem mole, nem doce, nem cristalizado. Sempre digo que, “tirando buchada de bode e jaca”, sou capaz de comer tudo. Não como tudo, é verdade, por opção e alguns pudores do paladar. Por exemplo, pensar em polvo já me causa um travamento na mandíbula; assim como vinho de barril. Melhor não. - Entregar-se ao Inusitado Sei lá por que motivos a pilha de jacas me encantou. Cismei que ia levar uma jaca para casa, absolutamente ciente que estava curando a minha frustração praiana. Eu faço loucuras, mas sei que são loucuras.  Lembrei que uma vez comi coxinha de jaca e adorei.  Pronto! Vou cozinhar jaca.  Mas tinha que ser verde. E dura. Expliquei para o rapaz que, pacientemente, foi lá no mato pegar uma jaca, com o tamanho ideal para o meu intento, já que tinha que caber na minha panela.  Comprada a jaca, voltei para casa sentindo uma felicidade insana.

Mas felicidade é assim, não precisa de maiores motivos mesmo, né? Inclusive, pensando bem, quando é que houve alguma sanidade no modo como sentimos as coisas? É tudo dado pelos nossos imensos e incomensuráveis filtros experienciais. Peguei a jaca e, em casa, corri para a internet pesquisando o modo como fazer a jaca. Muitas receitas, todas partindo do primeiro obstáculo: cozinhar a jaca! - A hora do e agora? Há duas opções básicas, ou você enfia a jaca na panela de pressão ou embrulha em papel alumínio e põe no forno. Descobri o mundo paralelo da jaca e naquele dia a jaca começou a descolonizar o que eu entendia por descolonização da alimentação. Entendi que apenas pulava de muita colonização para média colonização. Por menor que fosse, a danada da jaca não coube na panela. Pensei em cortar, mas imaginei a quantidade de gosma que poderia sair neste ato. Foi demais para mim. Optei pelo forno. Na opção forno, você faz junto o exercício do desapego do gás e da paciência, porque a jaca tem hora para entrar, mas não tem para sair.

É muito tempo assando, acho que um pernil seria mais rápido. Mas eu estava determinada a terminar o que comecei. Às vezes a gente começa alguma coisa e larga. Quem nunca? Por diversas razões, paramos porque achamos que não daremos conta. Colocamos a culpa nos fatores externos como o tempo, o dinheiro, o governo, a serventia das coisas; mas, no fundo do fundo, paramos porque falta auto confiança. Eu sabia que o resultado da jaca poderia ser um fiasco; corri risco o tempo todo, de investir o gás em algo que poderia ir para o lixo, de criar expectativa em torno de algo desconhecido, de me meter a fazer uma coisa que eu nunca tinha feito e, por isso, certamente estaria sujeita ao inesperado fiasco. 

Talvez eu chamasse isso de perda de tempo.  Mas, neste dia, eu resolvi que iria finalizar e celebrar a experiência, ainda que meu gás acabasse. Afinal de contas, de onde vem a ideia chata de que a gente tem que gerar lucro ou ser produtivo sempre?

Toda experiência é, em si, lucrativa, pois há um aprendizado prontinho para ser servido, desde que se queira. Mas acontece que fomos treinados para acreditar num tipo de fórmula social de dar certo. É uma fórmula, um formato, que pode ser apreciado pelos outros, atestando o que se convencionou chamar de sucesso ou de conquista, mas ninguém te pergunta se aquilo está bom para você. Uma espécie de colonização do sucesso.

- Diversificando Enquanto o cozimento seguia, fui pesquisar receitas. Num site precioso, que só vi depois, a pessoa avisa: vai demorar, aproveite o forno pra fazer outras coisas. Conselho fundamental! Naquela altura já havia uma hora de jaca ao forno. Assei legumes e almocei. E a jaca, nem tchum. Eu tinha um preparado para pão e coloquei para assar. Pão demora um pouquinho; pois ficou pronto e a jaca seguia impávida. Fiz um pudim de milho, toquei lá no forno. Pudim pronto e cansei de cozinhar. Fui ver uns vídeos, ler um capítulo do livro eterno, Jung e o Tarô. Até que resolvi dar um ultimato na jaca, tirei do forno e testei com uma faca que entrou gloriosa. Aleluia! - Programações, programações Já devia estar cozida há algum tempo, mas sendo uma experiência primeva, imaginei que a jaca daria algum sinal. Talvez cheirar diferente, mudar a cor da casca, ficar com um jeitão de "tô cozida".  Exatamente! Eu não verifiquei, provavelmente ela estava assada já há algum tempo.

Eu não tomei conta. Neste momento descobri que quando a gente experimenta algo diferente e inusitado, precisa ter alguma atenção. Todas as expectativas são baseadas em conhecimentos anteriores.  A jaca cozida parecia a jaca crua e eu não sabia. Devo ter gasto umas três horas de forno além da conta. Deixei esfriar, cortei e as surpresas começaram.  O resultado era uma coisa meio cinzenta, com cara de nada e gosto de coisa alguma. Nem de jaca.

Sabe quando você constrói expectativa e a coisa é aquém; lá de dentro emerge a pergunta “o que eu deveria sentir ou fazer neste momento?” São segundos seculares de indecisão e tomada de rumo.

Ficar aquém, interrompendo a experiência por medo de auto julgamento ou seguir o fluxo.

- Encarando a jaca Ela estava ali e eu também. Incrivelmente fácil de desfiar, macia ao toque. Surpresa boa. Ainda bem que resisti ao impulso de jogar aquela massa cinza fora e nunca contar para ninguém sobre o vexame que eu imaginei que seria. Sem acreditar muito nesse povo de internet, que tem solução miraculosa para tudo, fui testando os temperos.  A jaca é incrível. Se colocar colorau, parece carne seca. Se colocar curry, parece frango. Se capricha nos verdinhos e tomates, tem uma pegada italiana. Que divertido! Uma coisa que pode ser outras coisas! Acho que todos nós temos um pouco de jaca, quando se troca o tempero. Diversificamos, sem nos dar conta de que somos a própria diversidade. Roupa de festa, de trabalho, cara limpa, maquiagem, cabelo solto, cortado curto, pé descalço, salto alto. Profissional, amigo, filho, irmã, avó, vizinho, mãe e pai de crianças e animais. Temperos, para a jaca insossa que as vezes nos sentimos. Muitas vezes chamamos esses temperos de problemas, e outras tantas vezes não seríamos nada sem eles. Mas o fundamental é que sem a jaca, não haveria nenhuma das experiências. Então, sem o EU, nada seria este montão de coisas que chamamos problemas e felicidades. Não tem muita facilidade; até quando a gente acha que é fácil; não é. Todo mundo tem seu visgo, sua casca grossa, quem gosta e quem não gosta.

A vida dá um certo trabalhinho, exige algum desapego e coragem; os riscos existem, mesmo quando a gente acha que está seguro, porque não há nada, absolutamente nada, garantido e realmente seguro. A grande questão é o quanto podemos nos permitir e ser gentis com nossos limites.

-Abrindo a perspectiva Fazer a jaca é como aplicar na bolsa de valores.  Eu tinha comido uma vez, achei uma delícia, preparada por um profissional. Mas quantas vezes a pessoa perdeu jaca, antes de achar o ponto? Como na bolsa de valores, resultados passados não são garantia de futuro; mas ainda assim é muito estimulante abrir a perspectiva de que você pode fazer algo, que antes supunha não poder, pela ilusão de manter-se em segurança. Fazendo o eterno bife, sabe como? 

Colonizados no pensamento, fazendo só o que alguma instituição, real, imaginária, política, ancestral, social ou qualquer outra, nos permite fazer. O complexo é que acreditamos nestes lugares de impossibilidade e repetimos cartilhas de nexo curioso de desvalor e pouca criatividade. Estas coisitas esquisitosas, se mostram na relação com nossa comida, nosso dinheiro, nossa saúde, onde entregamos ao outro, a responsabilidade por cuidar bem de si. -Saindo da zona de conforto Preparei um guisado. Temperos à beça, que adoro, a jaca foi pegando uma cor bonita. Perfumada, desfiando na panela.  Não tem um sabor ativo, mas tem um sabor que te convida para a apreciação.  Me recuso a chamar de carne de jaca.  Não é carne.  É jaca. Pronto! Mania esquisita que temos de colocar o nome de uma coisa antiga numa coisa nova.  É a tal da zona de conforto, a sensação de que sendo algo conhecido traz um alívio, naquele encontro decisivo da criatividade com a limitação. A vida deveria ser aproveitada no supra sumo da jaquice, combinada com a criatividade que o ser humano tem, na sua natureza e a habilidade de transformar as coisas em outras coisas, quebrando seus próprios paradigmas limitados. Muitas vezes a vida vem com uma força estranha e faz a gente esquecer que nascemos destemidos, nascemos para encontrar caminhos, para fazer a alquimia da transformação pessoal. - Desafios sempre existem A fronteira final foi oferecer jaca no almoço do dia seguinte. Deu um medinho, sim.  Filho veio, olhou a panela e disse: humm que bonito! Comeu, repetiu. Perguntei se gostou, enquanto ele ia na panela petiscar mais um pedaço.  Rindo muito eu disse: É jaca ! A cara dele foi impagável: Mãe, você me deu jaca para almoçar? Taí, gostei! Se eu tivesse dito antes, será que teria comido? Quantas vezes deixamos de fazer algo, supondo conhecer tanto o outro e tendo certeza das respostas já programadas? - Chutando a Jaca Somos preconceituosos mesmo! E precisamos sair do lugar comum, daquilo que já é conhecido e confortável. A zona de conforto, tem esse nome por ser muito conhecida, mas é de uma mesmice paralisante. Isto vale para nossas escolhas alimentares, financeiras, relacionais e muitas outras repetições já padronizadas no nosso cérebro. Isto é bom, isto é ruim. Isto é seguro, isto é perigoso.

Desta forma mantemos a mesma operadora de serviço, pagamos academia sem frequentar, não trocamos de banco, mantemos um monte de gente chata pendurada na cintura. Onde aprendemos essas regras todas? Já se perguntou sobre isso? Nos disseram pra não sair da linha, que tomar banho de chuva dava resfriado, que deveríamos seguir caminhos já desenhados, que precisávamos ter uma profissão segura e respeitável, que somos os últimos da fila e temos que ter medo, muito medo, para sermos bem controláveis. Este medo todo cria um princípio de impossibilidade, um certo cansaço até mesmo de ordem física. Então, deste estado de ânimo, para que admitiremos coisas novas? É que isso dá trabalho e preferimos seguir reclamando do que já é conhecido, do que investir energia em mudar para algo inusitado. Nós nos convencemos, dentro de cada célula, que não podemos.  Quebrar este tipo de padrão exige uma ação nova, que seja, cozinhar uma jaca.

Fazer algo inusitado oferece uma experiência interna curiosa! De repente, você é criança de novo. Está ali, porque está. Vivendo só aquilo, agora. Écom o brincar. É sobre bem estar.  Como adultos, nossa cabeça não dá trégua, mas é possível aprender e abrir estes espaços. 


-Seja simples mas preste atenção Quanto mais simples melhor. A cabeça sempre procura algo bem complicado, mas aqui é sobre transformar uma experiência simples, num processo alquímico. Num movimento qualquer, que você não tinha pensado como sendo possível. Nada de tentar livrar-se de trabalho. Tudo é trabalho, tudo exige dedicação.  Até para contemplar a gente precisa aprender, até que seja muito, muito disponível. A jaca cozida, como a maior parte das coisas da vida, vai ganhando sabor conforme o tempero, migrando do sem gracismo absoluto ao universo de sabores e formas de ser servida. É tudo sobre perspectiva. E tudo, tudinho, na mão do artista que dispõe a vida para si. (dezembro de 2019)

-De lá para cá Agora estamos em outubro de 2020. Desde este passeio e esta experiência, o mundo como era conhecido mudou inteiramente. Minha relação com supermercado mudou radicalmente. Prefiro os produtores.  Não sou convencida pelas embalagens. Tomo conta do meu dinheiro e aprendo constantemente sobre aplicações. Nenhum gerente de banco me convence a cumprir a cota dele. Todos os programas e taxas de manutenção  foram revistos. De telefonia a cartão de crédito. Inseri atividades físicas diárias. Continuo cozinhando coisas diferentes.  O vendedor de jaca ainda está lá.


Ilustrações da Luciana Lima - Infinito Possibilidades



Receita:

Pimentões recheados com jaca desfiada.


Jaca fria e desfiada.

Faça um refogado.

Alho amassado e frito no azeite ( sou exagerada nesses ítens)

Acrescente cebola cortada fininha.

Coentro ( se você gostar )

Cheiro verde até o mundo se acabar

Vá refogando sem pressa, fogo baixo. Ponha uma boa música.

Acrescente tomates picados, sem sementes.

Pimenta dedo de moça, picada e sem sementes.

Sal ao seu gosto.


Observe se precisa acrescentar água.

O refogado vai ganhando uma cremosidade de fazer a gente derreter.


Deixe esfriar.

A esta altura os pimentões já devem estar cortados ao meio e sem sementes, para receber o recheio.

Aí você pode enfeitar. Nesta receita usei lascas de queijo.


Afoitos podem acrescentar creme de leite no refogado.

Fica muito delicioso.


AH! as sementes da jaca podem ser assadas e servidas como petiscos!

Uma jaca pequena vai render muitas refeições.

O que você nao for usar, congele sem temperar.

E invente à vontade.









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